- Ouviste o que disse o aquecedor?
- Como?
- Repara na luz. Repara como muda de intensidade... Está a dizer qualquer coisa!
- Mas isso é um aquecedor, não fala!!!
- Shut!... Não ouves o murmúrio?... Está a dizer qualquer coisa!
- Mas isso é o barulho da electricidade a passar...
- Shut!... Escuta!...
- Deixa-te de tretas. Vamos embora!
- Não posso.
- Não podes?!?...
- Tenho de ficar ao pé da luz. Está a querer dizer-me qualquer coisa! É importante!...
- Importante?!? Ainda acabas é na Casa Amarela a apanhar choques eléctricos...
- Pois eu acho que há aqui uma entidade qualquer, um ser de outra dimensão, uma energia cósmica, a tentar estabelecer contacto comigo... Repara no cintilar, nas pequeninas explosões de luz... Isto não é electricidade!
- Não!... Isso não é electricidade... São miolos a fritar!
- O quê?
- Disse que tens os miolos a fritar. Deve ser do calor...
- Por acaso estou cheio de frio!... Não queres ligar o aquecedor?
- Mas tens o aquecedor no máximo! Nem sei como não te queimas, aí tão perto...
- Shut!... Escuta!...
- Bom, vou-me embora! Depois conta-me o que te disse o ET...
...
Assomados, com o andar titubeante das vítimas da realidade absoluta, desfalecemos em convulsões de electrochoque no turbilhão da engrenagem triturante que nos transportou em sucessivas oscilações sísmicas para o apaziguamento da indiferença e o amargo isolamento da solidão. Nada é o que era, nada foi o que sonhamos, apenas visões esfumadas ao contacto da memória, apenas imprecisas impressões de um tempo gasto pela usura. Tivemos o mundo, fomos o mundo...
Salve, cadáveres brancos da inocência!
Salve, corpos belos do amor!
Salve, feiticeiros da embriaguez permanente!
Salve, magos da existência não fragmentária!
Salve, pederastas do desejo, junkies do caos, prisioneiros da liberdade!
Salve, irreprimível lúdico!
Salve, criadores de vida, amantes da infância, viciados do presente!
Salve, orfãos perdidos!
Salve! Salve! Salve
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